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Homenagem a Eduardo Nery Memória de uma artista

Algumas pessoas no meio artístico poderão ter visitado a grande exposição em 2009, na qual foi apresentado um terço da minha colecção de arte africana, organizada pela Câmara Municipal de Lisboa. Outras talvez tenham visto uma exposição de pinturas minhas inspiradas em máscaras africanas, apresentada na Galeria Valbom, e outras ainda poderão ter visitado duas outras de fotografia, sob temática similar, a mais divulgada de todas, a exposição “Metamorfoses”, esta apresentada em 2005 na Fundação Calouste Gulbenkian, e depois em museus na Noruega e em Dakar.

Porém, poucas pessoas terão consciência de que este meu interesse pela arte africana (e pelas artes tribais em geral), corresponderá a um projecto mais vasto, já que sempre foi minha intenção criar, ou contribuir para criar, um museu de arte africana no nosso país que inexplicavelmente não existe. Ninguém saberá que sou autor do extenso livro “Artes Africanas. Aproximação Estética de um Artista”, ainda no prelo. Compreendido isto passará a fazer mais sentido esta pequena exposição na Dimensão, incluindo obras seleccionadas na minha colecção, e algumas pinturas e fotografias que reflectem de algum modo a minha paixão e pesquisa dentro da artes africanas tradicionais.

Assim, como aqui disponho de pouco espaço para me referir à minha visão sobre as artes africanas, limitar-me-ei a transcrever dois parágrafos retirados da introdução desse livro ainda por editar entre nós: (…) Quase todas as artes africanas se encontram dominadas por uma concepção do tempo circular e repetitiva, tendo sobretudo em linha de conta o trajecto do sol e da lua no céu, e das estações no respeitante à agricultura nos povos sedentarizados. Porém, nas suas cosmogonias e mitos existe o momento criador do mundo e de seguida o aparecimento do homem, dos animais, das plantas e dos rios e montanhas. Outros faziam contrastar a esfera celeste com a terra e mesmo com um mundo subterrâneo. Porém, esse tempo de actualização periódico dos mitos de criação, celebrados em cerimónias, eram apenas interrompidos pelos nascimentos e pela morte, ou por outros ritos de passagem, como os de iniciação dos jovens e os funerais (…).

(…) O tomar consciência desta concepção de vida ajuda a compreender que nessas artes as figuras sejam frequentemente verticais, ou estejam sentadas e que a sua estruturação plástica se sirva muito da simetria e, nalguns casos, das leis da frontalidade. As figuras têm muitas vezes os olhos fechados ou semicerrados, porque não parecem olhar este mundo. Trata-se frequentemente de antepassados, vivendo numa outra dimensão espiritual, precisamente no mundo da eternidade ou da ausência de tempo. E quando as obras se voltam para a celebração da vida e da fertilidade também se mantém essa mesma concepção do tempo circular, dominado pela eternidade, porque os mitos não têm tempo (…).

Quanto às minhas pinturas, nas quais tomei como base máscaras africanas, procurei acima de tudo exprimir a energia psíquica, emocional e transcendental nelas subjacente, tanto nas cerimónias em que dançaram, como na sua estruturação no plano plástico e simbólico. Tal pesquisa pictórica, muito intensa e expressionista, também me serviu de pretexto para exprimir a dinâmica energética existente nas auras humanas. Daí o subtítulo que lhes dei no catálogo, “O Visível e o Invisível”. Ora, como o invisível não pode ser representado directamente, resta ao pintor sugeri-lo por meios plásticos, na esperança de o tornar visível aos outros.

Também nesta mesma fase criei muitas fotografias em preto e branco, sob o título genérico de “Transfiguração”, estas expostas na SNBA, em Lisboa. Nelas procurei exprimir as mesmas preocupações acima referidas. A maior diferença entre ambas é que na pintura usei a cor com imensa intensidade, recorrendo para tal a um número muito reduzido de cores primárias, enquanto na fotografia também recorri a grandes contrastes, mas aqui baseados na luz e no claro-escuro. Porém, no caso da fotografia servi-me de véus translúcidos que tendem a irrealizar e mesmo a desfocar a imagem. Ao faze-lo, procurei exprimir identicamente a energia psíquica que se expande nas auras humanas, muito embora também tenha procurado traduzir a energia interior, subjacente nas peças africanas na minha colecção. Esta atitude estética é, a meu ver, tão expressionista como a das pinturas dessa fase.

Algumas pessoas associaram estas fotografias à morte, quando afinal o que eu procurei foi exprimir precisamente o contrário, ou seja, a vida psíquica e a energia vital. Claro que não ignoro que algumas delas poderão evocar fantasmas ou ectoplamas. Mas como exprimir a inter-relação entre visível e invisível nas artes visuais? Procurei ainda traduzir, de forma intensa e contrastada, o eterno conflito entre a vida e a morte, entendido e traduzido aqui como um combate dramático e sem tréguas entre ambas as realidades de carácter ontológico.
Quanto à série “Metamorfoses”, caracterizada por duplas exposições fotográficas, torna-se dificil falar sobre ela em poucas palavras. Embora contemporânea à série “Transfiguração”, esta outra corresponde a uma visão Surreal do ser humano. Com efeito, nestas metamorfoses procurei exprimir a dualidade existente em todos nós, entre o nosso lado consciente e o inconsciente, ou entre a claridade e a sombra. Para tal, servi-me do efeito de estranheza (na maioria dos espectadores) para com a arte africana, de tal modo que esta dissociação psíquica se torne mais patente, entre rostos de pessoas comuns em oposição extremada com máscaras e cabeças de esculturas africanas, exprimindo ambiguidade e duplicidade. São assim, obras de grandes contrastes não só pelo preto e branco, mas sobretudo, pela dualidade nelas existente entre o Nós e o Outro (o dos outros), ou ainda, entre o Ego e o Outro, este último aquele que partilha a nossa realidade interior, apesar de o tendermos a recalcar ou a esquecer no nosso quotidiano.
Texto de Eduardo Nery